Eu tava ali, naquele quarto com paredes brancas e pilastras verde-claro. Quarto de hospital é frieza materializada. A cor não incomoda os olhos. Não incomoda. Não existe.

Minha tia dava banho na minha vó. Logo ali, no banheiro, enquanto eu olhava para uma cadeira vazia na minha frente. Do meu lado estava a cama onde a vó ficava, do lado da cama estava a poltrona fria onde eu sentava e, na minha frente, uma cadeira vazia. Nada existia naquele segundo, só eu e aquela cadeira vazia. Perguntei a minha tia e a minha vó se precisavam de ajuda. A vó respondeu com secura:

– Não precisa, a não ser que tu queira ver uma velha tomando banho!

Eu não quis. Não pude. Não consegui. Me senti o ser mais desumano do mundo. Tinha chegado há pouco no quarto 304. Passei duas horas ali, conversando com a véia enquanto ela  vomitava, em intervalos constantes, o soro que entrava pelas veias… Nada mais circulava no corpo dela, senão o soro. Visitas chegavam, visitas saíam, e ela ali, como se o vômito fosse o respiro da conversa. Os visitantes fingiam não perceber, desviavam o olhar a todo o momento. E eu também.

O banho da minha vó teve a duração de uma eternidade. Eu seguia naquela poltrona, sem me mexer, sem respirar, sem ser. Com vergonha do meu medo de encarar o fim da vida sendo esfregado na minha cara.

A vó saiu do banho dizendo:

– Não tá uma Brastemp, mas tá melhor. – Eu ri, peguei no braço dela e a levei até a cama.

Daquele momento até agora eu tenho raiva. A dor não é privilégio de quem a merece. A dor não tem piedade. Ataca e consome. E não há nada que se possa fazer a não ser assistir e tentar amenizar a dor alheia em um teatro fajuto, que não convence a ninguém. E nessa dissimulação, a véia rompeu em sinceridade:

– Eu acho que não saio daqui. – Eu, em um impulso de dor, rebati imediatamente :

– Pára vó, e as tuas flores na frente de casa, que tu fez questão de me mostrar, lindas! Tem que voltar e cuidar delas, do jardim!

Enquanto eu dizia isso sentia meu corpo se rasgando por dentro. Queria gritar e sangrar, mas mantive o tom teatral e sorri. Minha vó não. Sorriu em despedida, não me olhou. Mais uma vez eu morri.