…já não sou

Recolhi a roupa do varal. A tarde secou tudo, junto com o meu sorriso.

Dobrei minhas pausas e dividi cada canto do armário com o silêncio da minha voz. Já não sabia da tonalidade, muito menos do tom do meu canto. Já não encantava, portanto, ou por tanto…

Cansei a espera lúcida, vestida de preto e de branco. Já não transparecia a coisa, ou o qualquer. Ainda sonhava com o grilo insistente da madrugada. Queria espaço pro lamento, sem questionamento, sem por quê.

Duvidei da vontade. Chorei minha saudade. Perdi as migalhas que deixei no caminho… Já não sei voltar. Já não sou.

…do orgulho

Meu orgulho reina num império de prepotência soberana. Expatriou a dignidade do bom senso e condenou a compaixão à morte. Escondeu nos bolsos o infortúnio da mentira. Selou com a ponta dos dedos a covardia da atitude velada enquanto, com as unhas, ávidas por domínio, rompia a boa fé. Escravizou a piedade, transformou-a em servidão.

Meu orgulho tem um medo confesso… De enxergar o monstro no espelho. Fauno que disfarça a atitude maléfica do Minotauro em labirintos racionais. Poder matemático que saboreia almas perdidas pelo caminho.

Meu orgulho conhece apenas uma verdade… A da nudez preenchida pela carne. Ainda assim, iluminada pela crença perversa da superioridade. Resiste em uma existência vazia.

Batalha perdida…

Rotina de sutilezas ameaçadoras. Imagens, ações, palavras. A leviandade do que toma para si a onipotência de julgar o certo e o errado, sob o pretexto de um senso comum construído na carnificina diária da ignorância. Uma união de corporações que enfiam goela à baixo o poder de controle mental e comportamental, com o objetivo de deixar no outro uma secura doída, carregada de medo e ódio. Meu corpo é tomado de um enjôo torturante, enquanto a mente luta para não cair em desespero. Batalha diária por um pouco mais de humanidade, enquanto a guerra segue, financiada com o capital monstruoso do interesse privado. Ainda alimento a esperança de uma nova batalha amanhã, porque a de hoje eu perdi. 

A vida passa, as pausas se cansam, e o pensamento fica… Sei lá, o passado é digital repassada, não engana, não mente, não esconde… É. O sonho persiste, inventa, reinventa. Remarca. Sei lá. A vida segue o compasso dissonante né, até reencontrar aquele pedaço rasgado de pele. A pinta perdida no corpo, a cicatriz no pescoço… Efemeridades… Alheia é a digital, a ponta dos dedos… Tem coisas que mudam, outras não…

Daquela pele pintada…

E tive o velho rompante de nostalgia usada. Que vestiu o trapo, sujo, rasgado feito unha presa na carne. Arranhou a pele com gosto, com raiva, com pena. Vestiu restos, remoeu. Eu, com meu orgulho fatigado de vício, cansei mais uma pausa. Usei minha tentativa, ousei a curiosidade.  Olhei e não enxerguei.  De resto, só os soluços alcoolizados, da madrugada que eu costumava cegar em exaustão.

Bebi até soluçar pra fora minha saudade mentirosa. Gravei na pele aquela outra pele pintada.Contei todas, até que elas caíssem, uma a uma. E restou o riso morto. Fingido de alegria complacente.

(ir) racionalidade

Uma mulher desfila a maternidade na rua, orgulhosa. Pessoas param em admiração enquanto ela puxa com a mão a cordinha presa ao coletinho que veste o filho. É a coleira infantil, garantia de funcionalidade salvaguardada pelo Inmetro! Coisa fina. O guri se delicia em tentativas, vãs, de explorar os mistérios escondidos naquele um metro de liberdade. O limite é o susto da puxada da mãe. Ela sorri em controle e segurança, enquanto carrega junto ao peito um cachorrinho devidamente calçado com sapatinhos azuis. O menino olha para trás com olhar descontente, mas segue em instinto atávico, esticando os bracinhos em vontade e confiança. A mãe, orgulhosa, responde com sorrisos.

Na praça da esquina, as pombas são soberanas. Exercem domínio pela sedução da liberdade desenhada nas asas imundas e pulguentas. Desfilam em voos rasantes em busca dos pedaços de pão jogados por quem mata o tempo sentado no banco. Do outro lado, um homem repousa a sujeira da indignidade na porta de uma padaria. Estende a mão invisível, mendiga inutilmente enquanto casais sorridentes saem com sacolas cheirando pão quente.

A humanidade responde ao nível da (ir) racionalidade contemporânea.

A casa azul

Morte é ponto final. E tem a cor dos olhos dela…

O corpo se espreme… E treme buscando ar.

A pele envelhecida, o caminhar incerto, a mão buscando apoio. O riso doído em passado. A vida que ficou em negativos guardados.

Ela vivia na lembrança em preto e branco.

O rádio velho, na cozinha, ainda está parado na sintonia da rádio local. E ali vai ficar, para sempre.

O piso guarda o ranger dos passos, junto com o perfume de lavanda que brota da penteadeira, no quarto.  O armário, com os casaquinhos, as roupas velhas, os pijamas. Tudo junto com o chapéu dele, que há 13 anos alimentava a vida dela, todos os dias, quando abria os olhos pela manhã.

Esses olhos azuis já não relembram em dor, já não choram. Ficaram em mim, em sorriso duvidoso, em vazio.

Eu sou a saudade nas flores do jardim da casa azul.

A minha vó…

Eu tava ali, naquele quarto com paredes brancas e pilastras verde-claro. Quarto de hospital é frieza materializada. A cor não incomoda os olhos. Não incomoda. Não existe.

Minha tia dava banho na minha vó. Logo ali, no banheiro, enquanto eu olhava para uma cadeira vazia na minha frente. Do meu lado estava a cama onde a vó ficava, do lado da cama estava a poltrona fria onde eu sentava e, na minha frente, uma cadeira vazia. Nada existia naquele segundo, só eu e aquela cadeira vazia. Perguntei a minha tia e a minha vó se precisavam de ajuda. A vó respondeu com secura:

– Não precisa, a não ser que tu queira ver uma velha tomando banho!

Eu não quis. Não pude. Não consegui. Me senti o ser mais desumano do mundo. Tinha chegado há pouco no quarto 304. Passei duas horas ali, conversando com a véia enquanto ela  vomitava, em intervalos constantes, o soro que entrava pelas veias… Nada mais circulava no corpo dela, senão o soro. Visitas chegavam, visitas saíam, e ela ali, como se o vômito fosse o respiro da conversa. Os visitantes fingiam não perceber, desviavam o olhar a todo o momento. E eu também.

O banho da minha vó teve a duração de uma eternidade. Eu seguia naquela poltrona, sem me mexer, sem respirar, sem ser. Com vergonha do meu medo de encarar o fim da vida sendo esfregado na minha cara.

A vó saiu do banho dizendo:

– Não tá uma Brastemp, mas tá melhor. – Eu ri, peguei no braço dela e a levei até a cama.

Daquele momento até agora eu tenho raiva. A dor não é privilégio de quem a merece. A dor não tem piedade. Ataca e consome. E não há nada que se possa fazer a não ser assistir e tentar amenizar a dor alheia em um teatro fajuto, que não convence a ninguém. E nessa dissimulação, a véia rompeu em sinceridade:

– Eu acho que não saio daqui. – Eu, em um impulso de dor, rebati imediatamente :

– Pára vó, e as tuas flores na frente de casa, que tu fez questão de me mostrar, lindas! Tem que voltar e cuidar delas, do jardim!

Enquanto eu dizia isso sentia meu corpo se rasgando por dentro. Queria gritar e sangrar, mas mantive o tom teatral e sorri. Minha vó não. Sorriu em despedida, não me olhou. Mais uma vez eu morri.

Meu corpo tudo sabe. Reage com resposta certa ao estímulo que lhe cobra uma ação. Seca a boca pra calar a palavra. Lava as mãos com o suor do meu medo. Antecipa a higiene de toda a culpa. Acaba com qualquer vestígio que se atreva a atormentar com memórias.

 

“…no se necesita ser Sigmund Freud para saber que no hay alfombra que pueda ocultar la basura de la memoria.”

Morri

Eu, seca de sede. Neguinho apontou o planeta vermelho e me mandou rodar a saia. Estapeou meu sorriso em meia boca, gritou na minha nuca:

– Roda a saia galega que a jangada do mar já partiu!

Arrastão me levava enquanto a Maria gritava da outra ponta do terrero:

– Vai, vai, vai, vai amar!

Do meio da roda ela trouxe meu cabelo cortado, jogado na pia do banheiro. Torceu aquele resto e dali tirou água salgada. Deu de beber à própria boca… Girou meu corpo que de matéria já não se fazia. Estremeceu…

– Vai, vai, vai, vai sofrer!

Meus pés se perderam em terra aguada. Do branco da saia fiz melado, pintei as canelas e me fiz vermelha. Eu era sangue, água e lama. Neguinho me pegou pelo ombro…

– Grita galega, da jangada, do meio do mar! O teu silêncio é praga do homem, grita galega!

Cantei meu grito em voz doída… Gritei meu abraço vazio, arrebentei meu tambor e me rasguei… Gritei meu corpo cansado e me joguei ao mar. Murmurei saudade afogada…

Morri.